REVISTA EDUCAÇÃO - EDIÇÃO 122
Escola integrada à comunidade
Ações sociais promovidas por instituições de ensino criam valor para a comunidade e dão forma ao conceito de cidadania entre os alunos
Ações sociais promovidas por instituições de ensino criam valor para a comunidade e dão forma ao conceito de cidadania entre os alunos
Ricardo Marques
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Em Itarema, cidade do litoral cearense, o que começou como um
simples trabalho de apoio a estudantes que prestam vestibular acabou trazendo
para a cidade a extensão de uma universidade estadual. No outro extremo do
país, na região missioneira do Rio Grande do Sul, uma escola municipal
convenceu a prefeitura a aperfeiçoar o sistema de recolhimento de lixo, alterou
os hábitos da população e engajou-se numa campanha de combate a um incipiente
surto de dengue. No interior do Paraná, alunos de uma escola de ensino
fundamental começaram a visitar abrigos de idosos e crianças e, agora, iniciam
contatos com uma tribo indígena que precisa, literalmente, de tudo. Na zona sul
de São Paulo, numa área de alto índice de criminalidade e baixo IDH, uma escola
profissionalizante gratuita, sem nenhum tipo de ajuda oficial, há sete anos vem
transformando alunos em professores e criando oportunidades para que outros
adolescentes repitam essa trajetória.
Em lugares e situações tão diferentes, todas essas iniciativas têm
uma origem comum: escolas que decidiram somar à educação convencional a decisão
de assumir um papel ativo nas comunidades em que atuam: formar alunos com
consciência de cidadania e responsabilidade social e multiplicar os efeitos das
ações empreendidas. Ainda há muito a fazer, mas o balanço dos avanços já
registrados é surpreendente, considerando que o trabalho costuma acontecer sem
muito barulho, com reduzido registro nos meios de comunicação.
Para citar apenas um indicador, existem hoje no Brasil mais de 18
mil estabelecimentos de ensino básico certificados com o Selo Escola Solidária,
que identifica aqueles que realizam ações sociais relevantes, capazes de
ultrapassar o mero assistencialismo filantrópico. Há dois anos, havia 12 mil
Escolas Solidárias, o que significa um crescimento de 50% no período. O selo
foi criado pelo Instituto Faça Parte, entidade dedicada à consolidação da
cultura do voluntariado na área educacional, com apoio da Unesco, do Ministério
da Educação e do Conselho Nacional de Secretários da Educação (Consed).
"O Selo Escola Solidária destaca iniciativas que estimulam a vivência da cidadania e da solidariedade, por meio de projetos sociais e de intervenção na realidade, imbricados na proposta pedagógica, com cunho formativo e em harmonia com a principal função da escola, que é promover a aprendizagem", explica Kátia Gonçalves Mori, coordenadora do Instituto Faça Parte. O selo surgiu em 2003, e desde então multiplicou-se o número de escolas certificadas. "Agora, nosso objetivo não é mais a expansão numérica, e sim um avanço na qualidade das ações realizadas", salienta Kátia.
"O Selo Escola Solidária destaca iniciativas que estimulam a vivência da cidadania e da solidariedade, por meio de projetos sociais e de intervenção na realidade, imbricados na proposta pedagógica, com cunho formativo e em harmonia com a principal função da escola, que é promover a aprendizagem", explica Kátia Gonçalves Mori, coordenadora do Instituto Faça Parte. O selo surgiu em 2003, e desde então multiplicou-se o número de escolas certificadas. "Agora, nosso objetivo não é mais a expansão numérica, e sim um avanço na qualidade das ações realizadas", salienta Kátia.
As estatísticas ascendentes do Instituto representam a evidência
de que a escola, como matriz de cidadania, é capaz de sair dos limites de seus
muros e promover ações que, concretamente, resultam em benefícios sociais. Na
maioria das vezes, muito mais do que verbas, recursos ou orçamento, o que faz a
diferença é iniciativa e disposição para inventar e sair da rotina de cumprir o
currículo e os compromissos do ano letivo.
Alguns dos projetos das escolas que ostentam o selo são criativos,
originais, autofinanciados e, sobretudo, focados nas carências locais. Abrangem
um amplo espectro de atividades, do atendimento direto a segmentos
historicamente abandonados, como idosos e crianças, até a ênfase na própria
educação, com enfoque extracurricular.
Cidade universitária
Um exemplo é a Escola Estadual de Ensino Médio Luzia Araújo
Barros, de Itarema (CE), cujos alunos que pretendiam ingressar numa faculdade,
até cinco anos atrás, tinham de procurar outras cidades. Com 33 mil habitantes,
Itarema tem cerca de 50 escolas municipais de ensino fundamental e apenas uma
estadual, de ensino médio, a Luzia Araújo Barros, que, em 1998, decidiu criar
um cursinho gratuito, informal, com professores voluntários, para os alunos e
interessados em geral.
Não é difícil imaginar o cenário: uma cidadezinha à beira-mar, a 220 km de Fortaleza,
natureza belíssima, mas sem escolas de ensino superior e fora dos roteiros
turísticos. O estudante terminava o ensino médio e não tinha muita escolha: ia
morar fora, ou resignava-se a parar de estudar e a arranjar alguma coisa por
ali mesmo.
A iniciativa dos gestores da escola quebrou esse círculo vicioso.
"No começo, a intenção era só abrir um curso preparatório para os alunos
que sonhavam em fazer faculdade, principalmente os mais carentes. Mas o
trabalho cresceu e, em pouco tempo, criou-se a oportunidade para a abertura, aqui
em Itarema, de cursos da Universidade Estadual Vale do Acaraú, cuja sede fica
em Sobral, a 120 km
de Itarema", conta o diretor da escola, o professor José Ivaldo
Bleasby Freires.
Atualmente, funcionam na escola estadual cursos de letras,
biologia, história e matemática, todos com licenciatura plena. "Alguns de
nossos ex-alunos agora são professores da universidade", explica
José Ivaldo. "Criou-se uma perspectiva mais ampla para a população,
com a possibilidade de ingresso numa faculdade local, o que melhorou o nível de
toda a comunidade. Itarema já está acima da média de escolarização do Estado,
erradicou quase totalmente o analfabetismo, e vai ficar cada vez melhor."
Sem prédios, sem bancos, sem quase nada
Um trabalho parecido se realiza num conturbado distrito no extremo
sul da capital de São Paulo, onde se localiza o Centro Educacional e
Assistencial de Pedreira (Ceap), que possui 488 alunos e 135 colaboradores, dos
quais 51 são funcionários contratados. Não existem prédios na redondeza e quase
nenhum serviço público. Do Ceap à agência do correio ou ao banco mais próximo é
preciso andar meia hora de carro. A escola fica no meio de um conjunto de
favelas conhecidas por nomes enganosos: Jardim Selma, Jardim Itapurá, Jardim
Natari e outros jardins inóspitos. Atende a uma área que, grosso modo, pode ser
circunscrita num perímetro de cinco quilômetros de diâmetro, no qual, segundo a
subprefeitura de Santo Amaro, vivem 1,2 milhão de pessoas, população maior do
que a da maioria das capitais brasileiras e que cresce 6% ao ano, mais do que a
média do país.
Inicialmente, o Ceap criou um cursinho para os alunos, o
Vestibular Extensivo Pedreira, ou VEP, com excelentes resultados. Em 2000, os
dirigentes da escola perceberam a necessidade de apoiar também os jovens que
queriam ingressar no próprio Ceap, a única escola profissiona-lizante na
região, como explica o professor Jod Tori, que começou como voluntário em 1994
e foi contratado, com salário, em 2003: "Por aqui há pouca oferta de
educação, por isso o Ceap é muito procurado. A escola oferece cursos técnicos
de eletricidade residencial e industrial, informática aplicada, auxiliar de
informática, administração, telemática e telecomunicações, para jovens de 10 a 18 anos, e a relação
candidato-vaga é de dez para uma. Por isso, há um 'vestibulinho', mas a base do
aprendizado da maioria é muito deficiente".
O novo curso foi chamado de "Vepinho", com duração de um
ano e aulas aos sábados. Atualmente, atende a cerca de 200 alunos de 9 a 13 anos. Todos os
professores são alunos ou ex-alunos do CAD, alguns formados em Letras pela USP.
"O garoto que se forma aqui consegue emprego no máximo em um
mês", assegura Tori. "Quando isso acontece, ele dobra a renda da
família. Além disso, 80% dos nossos ex-alunos fizeram ou estão fazendo
faculdade, 30% deles em universidades públicas. Então, os efeitos se estendem
para a família e para a comunidade, na forma de inclusão social. Eles só
precisam de uma oportunidade", acrescenta.
Do lixo à dengue
O Ceap, segundo Kátia Mori, insere-se com perfeição no modelo de
escola que o Instituto Faça Parte procura destacar neste ano. "O
diferencial que buscamos agora é o bom nível das ações, para qualificar as
escolas mais democráticas, que promovem ações sistematizadas, com proposta
consolidada no projeto pedagógico e com uma integração mais forte com a
família", explica.
Kátia lembra que a escola é, por excelência, um espaço de
responsabilidade social e de cidadania: "Queremos identificar aquelas que,
além de oferecer um bom aprendizado formal, também estejam preocupadas com a
educação para a vida, a fim de intervir e melhorar as condições sociais".
Foi o que aconteceu na Escola Municipal São Paulo, da cidade
gaúcha de Entre-Ijuís, com 10 mil habitantes e a 450 km de Porto Alegre,
quase na fronteira com a Argentina e o Uruguai. Com 182 alunos de educação
infantil e ensino fundamental, a escola iniciou em 2001 um trabalho de
preservação do meio ambiente, que resultou numa ação para a redução da
quantidade de lixo na beira das estradas, cercados e valetas da região.
Com a cooperação dos órgãos públicos, conseguiu que a prefeitura
recolhesse semanalmente o lixo seco. Ao mesmo tempo, os alunos começaram a
distribuir panfletos e promover palestras, caminhadas e gincanas
ecológicas. Em 2005, criou a Cooperativa de Defensores do Meio Ambiente,
formada por 30 alunos, responsáveis pelo recolhimento e pelo encaminhamento do
lixo reciclável.
"Além do recolhimento semanal do lixo, pela prefeitura,
conseguimos conscientizar a população a respeito das questões ambientais. Houve
uma mudança de mentalidade, e hoje 90% dos moradores participam do nosso
trabalho", diz a professora Regina Aparecida Machado de Souza, diretora da
escola gaúcha.
O projeto valeu ao estabelecimento o segundo lugar no Prêmio
Escola Solidária de 2006, um estímulo adicional para a promoção de outras
ações. "Na semana passada, surgiram quatro notificações de casos de dengue
no município, e já saímos em caminhada para o recolhimento do lixo e de objetos
que facilitam a proliferação do mosquito", destaca Regina.
O trabalho começa em classe, com a abordagem interdisciplinar da
questão ambiental, do lixo e dos recursos naturais renováveis: "Depois,
vêm as ações fora da escola, envolvendo as famílias e a comunidade ".
Visita à aldeia
Esse envolvimento é fundamental em qualquer projeto desse âmbito,
diz Kátia Mori, do Faça Parte: "Trata-se de fortalecer o capital social,
que está muito fragilizado. Hoje, as pessoas não confiam umas nas outras, como
resultado da violência e da cultura de levar vantagem. A escola deve assumir o
papel de formadora da sociedade, da cidadania mais responsável, exercida na
diversidade, na pluralidade e na solidariedade".
Solidariedade e cidadania são o tema do projeto desenvolvido na
Escola Municipal Criança Feliz, de Marechal Cândido Rondon (PR), cuja maior
parte da população, de 50 mil habitantes, descende de alemães. A diretora Alice
Silvana Grutzmann Selke explica: "O trabalho começa na sala de aula, com o
estudo dos temas relacionados à cidadania: direitos e deveres, ética, atitudes,
valores e formas de participar dos problemas da comunidade. Em seguida,
propõe-se aos alunos a atividade prática".
Nessa etapa, os estudantes se dividem em grupos e visitam entidades do município, como a Casa Lar e o Asilo de Idosos. As observações dos grupos são discutidas em classe, e então os alunos do 1º ao 5º ano, os professores e os funcionários organizam campanhas para arrecadar alimentos e roupas para serem doados. Ao entregá-los, os alunos promovem apresentações de música, teatro e dança para quem está nas entidades.
Nessa etapa, os estudantes se dividem em grupos e visitam entidades do município, como a Casa Lar e o Asilo de Idosos. As observações dos grupos são discutidas em classe, e então os alunos do 1º ao 5º ano, os professores e os funcionários organizam campanhas para arrecadar alimentos e roupas para serem doados. Ao entregá-los, os alunos promovem apresentações de música, teatro e dança para quem está nas entidades.
Com 487 alunos, da educação infantil ao 5º ano do fundamental, a
escola já ampliou o projeto inicial. "Em junho, visitaremos uma aldeia
indígena carente, em São
Miguel do Iguaçu, para tentar ajudar no que for
possível", diz Alice. A partir daí, a situação dos índios brasileiros
passa a ser estudada pelos alunos sob uma nova ótica, a da experiência.
"O mais impressionante é perceber como os alunos se envolvem
e se emocionam. São crianças de 9, 10 anos que vão às outras classes para explicar
o projeto aos colegas, escrevem bilhetes para os pais, fazem cartazes e cuidam
da divulgação das campanhas. Pensamos em fazer alguma coisa, e daí surgem
outras idéias, que dão nova dimensão ao trabalho. Muda a atitude dos alunos,
das famílias e da própria comunidade", acrescenta a diretora.
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