REVISTA EDUCAÇÃO - EDIÇÃO 123
Escola em tempo de Comunicação
Meios e processos comunicacionais são cada vez mais usados como forma de proporcionar ao aluno a expressão de sua subjetividade e de, supostamente, tornar o ensino mais atraente; função crítica da escola em relação à mídia é consensual.
Meios e processos comunicacionais são cada vez mais usados como forma de proporcionar ao aluno a expressão de sua subjetividade e de, supostamente, tornar o ensino mais atraente; função crítica da escola em relação à mídia é consensual.
Cassiano José,
colaborou: Rubem Barros
Por
volta das 20h do dia 30 de outubro de 1938, a Columbia Broadcasting System começou a
gerar, em Nova York,
um inusitado programa de rádio para suas emissoras associadas. No total,
calcula-se que cerca de 6 milhões de pessoas tenham ouvido a emissão, um marco
na história do rádio, então um veículo com menos de duas décadas de presença
pública. Essa estrondosa repercussão, no entanto, foi resultado do pânico
coletivo a que foram induzidos os americanos pelo extremo realismo da adaptação
concebida pelo jovem Orson Welles para a Guerra dos Mundos, de H.G.Wells. Como
muitos ouvintes pegaram a peça já pela metade, acreditaram piamente que a Terra
estava sendo tomada por marcianos.
Desse
dia em diante, se havia dúvida acerca do poder de influência do rádio e dos
meios de comunicação de massa em geral, foi dissipada. Os regimes de exceção da
época, aliás, já tinham percebido isso havia tempos, utilizando-os para
insuflar seus adeptos ou para promover suas idéias de educação. No Brasil, o
pioneiro Roquette-Pinto defendia, desde os anos 20, o uso educativo do rádio. A
partir dos anos 60-70, com a popularização da televisão, os possíveis grandes
aliados tornaram-se um temor para a escola: o que fazer com esses concorrentes,
especialmente a TV, que seduzem os estudantes com imagens e sons e os desviam da
árdua construção do mundo letrado, constitutiva do ideário iluminista?
Entrados
no século 21, vivemos outros tempos: praticamente já não se questiona se o
mundo da comunicação deve confluir para a educação, mas como estabelecer o
diálogo entre um e outro. No ano passado, o Fundo das Nações Unidas para a
Infância (Unicef) patrocinou um estudo, o primeiro do gênero já realizado no
Brasil, com o intuito de descobrir quais os diferenciais de uma escola pública
de qualidade em relação à média das instituições. Para isso, analisou, durante
três meses, o trabalho de 33 escolas que se destacaram na Prova Brasil,
avaliação realizada em 2005 pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas
Educacionais Anísio Teixeira (Inep), do Ministério da Educação, com cerca de 3,3
milhões de alunos do ensino fundamental em mais de 40 mil escolas de 5.398
municípios brasileiros. Constatou que, entre outras características em comum,
as 33 tinham modelos democráticos de gestão escolar e ofereciam a seus alunos a
oportunidade de participar de projetos especiais, fora da grade curricular. O
documento de apresentação do trabalho (Aprova Brasil - O Direito de Aprender)
cita algumas dessas experiências, como o jornal mural do Colégio Estadual
Horácio de Matos, em Mucugê, na Bahia, que "certamente reforça a
capacidade de expressão escrita dos adolescentes", e a rádio-escola do
Centro de Ensino 03, em Guará, no Distrito Federal.
O resultado veio como uma bênção para aqueles que há anos advogam a necessidade de o trabalho em ambiente escolar com mídias diversas tornar-se política pública, consagrando um trabalho que começou na década de 70, no âmbito das comunidades eclesiais de base da Igreja Católica, ganhou espaço no meio acadêmico nos anos 80, gerou inúmeros projetos de ONGs nos 90, e começa a virar política de governo.
O resultado veio como uma bênção para aqueles que há anos advogam a necessidade de o trabalho em ambiente escolar com mídias diversas tornar-se política pública, consagrando um trabalho que começou na década de 70, no âmbito das comunidades eclesiais de base da Igreja Católica, ganhou espaço no meio acadêmico nos anos 80, gerou inúmeros projetos de ONGs nos 90, e começa a virar política de governo.
A
carreira de Ismar de Oliveira Soares, coordenador do Núcleo de Comunicação e
Educação (NCE) da Escola de Comunicações e Artes da USP reflete essa
trajetória. Vindo dos movimentos sociais da Igreja, tornou-se uma referência
entre os estudiosos de comunicação e educação do Brasil e da América Latina.
Suas pesquisas levaram ao desenvolvimento de projetos do NCE, como o
Educom.Radio, estendido em 2004 à rede municipal de ensino de São Paulo por
meio de um projeto de lei. Por sinal, a capital paulista aprovou lei que
determina que secretarias, entre elas a de educação, incluam projetos de
educo-municação em seu planejamento.
Em
função da própria estrutura pública do ensino no país, normalmente são os
municípios e Estados que, em parceria com universidades e ONGs, desenvolvem
projetos do gênero. Em âmbito federal, pouco há.
Em
muitos países, no entanto, a alfabetização para a mídia, mídia-educação ou
educomunicação é uma preocupação nacional. Nos Estados Unidos, o Ministério da
Educação tem um departamento só para os projetos de media literacy
(alfabetização ou letramento para a mídia). "Na Europa e nos Estados
Unidos, essa preocupação está incorporada; é política de governo, e não de
partido", explica Alexandre Le Voci Sayad, secretário-executivo da Rede de
Experiências em Comunicação, Educação e Participação (Rede CEP). "Não tem
descontinuidade: os projetos transpassam mandatos e resistem às alternâncias no
poder", diz.
A
Rede CEP foi criada em 2004 da união de dez organizações com histórico de
projetos no setor. Seu objetivo é promover e qualificar políticas públicas que
envolvam comunicação, educação e participação dos alunos no ambiente de ensino.
Os trabalhos dessas organizações foram analisados pelo sociólogo e jornalista Fernando
Rossetti, em 2003 e 2004, para um estudo encomendado pelo Unicef: Mídia e
Escola - Perspectivas para Políticas Públicas. Sayad entende que essas
iniciativas, de diferentes partes do país, devem realmente servir de modelo
para os governos: "O governo tem de se mirar no que já existe. O que a
gente não quer é que se reinvente a roda, que se crie um programete, um pacote
federal que obrigue o educador do Rio Grande do Sul e o do Pará a fazer o mesmo
projeto; o que a gente quer é que se ceda às diferenças regionais e sejam
replicadas as boas práticas locais já desenvolvidas", defende.
Na
prática, muitas das ONGs que integram a Rede CEP já têm secretarias municipais
e estaduais de educação como parceiras. É o caso da Comunicação e Cultura, de
Fortaleza, e da Bem TV, de Niterói, por exemplo. A luta da Rede é para que o
vínculo entre poder público e terceiro setor resista às mudanças de governo. Em
escala federal, o objetivo é colocar a educomunicação na agenda da educação
brasileira.
Mídia educadora
É
consenso entre os estudiosos da relação entre comunicação e educação que a
escola demorou a compreender o impacto da mídia de massa na formação da
consciência do indivíduo e dos valores da sociedade. "A escola, talvez
desde meados do século 20, desde o advento do rádio e da TV, vem perdendo lugar
no ordenamento dos valores e significados; certas funções antes exercidas pela
Igreja e pela escola pública hoje são desempenhadas pelos meios de
comunicação", analisa Eugênio Bucci, jornalista e doutor em Ciências da
Comunicação pela USP. O resultado desse processo é que o professor de hoje não
consegue mais competir com a televisão.
O
que acontece, segundo Bucci, que presidiu a Radiobrás, agência de notícias do
governo federal, de janeiro de 2003
a abril de 2007, é que a mídia sempre é educativa, quer
tenha a intenção de sê-lo ou não. Os empresários e profissionais de comunicação
deveriam, portanto, ser mais atentos à responsabilidade que pesa sobre eles. O
fato, para Bucci, é que a pedagogia televisiva forma pessoas abertas às leis do
espetáculo, seja quando educa para o consumo, o sexo ou a religião. A isso a
escola deveria reagir. "A escola não pode servir de ressonância para
apelos de mercado, não pode abrir mão de ser um espaço autônomo", aponta.
Para
José Sérgio Fonseca de Carvalho, professor do departamento de Filosofia da
Educação da Faculdade de Educação da USP, é "absolutamente
pertinente" que a escola desenvolva uma capacidade de leitura crítica dos
meios audiovisuais, pois, especialmente com o advento da TV, passamos a viver
um novo fenômeno: o de ter uma emissão centralizada, com informações geradas a
partir de centros de poder, com um esvaziamento da esfera pública. Essa
leitura, porém, deve ser feita sem prejuízo de sua dimensão original.
"Nossas
estruturas de pensamento são solidárias a um tipo de linguagem. É importante
ter uma capacidade de leitura da imagem. Agora, o distanciamento crítico em
relação à linguagem imagética não vem por meio dela. A cultura escolar é,
sobretudo, a cultura letrada. A imagem não é capaz de passar um conceito, pois
a linguagem conceitual não é imagética", defende Carvalho.
Os baixos índices de habilidades de leitura e escrita dos estudantes latino-americanos são apontados por outro intelectual, o educador colombiano Bernardo Toro, como um dos grande empecilhos para que as escolas utilizem os processos de leitura crítica e alfabetização para a mídia.
Os baixos índices de habilidades de leitura e escrita dos estudantes latino-americanos são apontados por outro intelectual, o educador colombiano Bernardo Toro, como um dos grande empecilhos para que as escolas utilizem os processos de leitura crítica e alfabetização para a mídia.
"A
compreensão e a análise crítica dos meios de comunicação de massa são dos
aprendizados mais necessários para se poder participar produtivamente da
sociedade presente e futura. Lograr o domínio dessas novas gramáticas
tecnológicas implica primeiro dominar as competências de leitura e
escrita", diz Toro. Para o colombiano, não há dilema entre escola e meios
de massa. A questão é a definição de um caminho ético de desenvolvimento
sustentável compartilhado, que dê sentido ao saber que temos acumulado.
Esperar
que os meios de comunicação espontaneamente passem a transmitir outros valores
parece não ser suficiente. Cobrar do poder público o papel de proteger a escola
do impacto da mídia esbarra na dificuldade que se encontra em classificar e
estabelecer limites para os conteúdos, uma vez que medidas desse tipo tendem a
ser vistas como mecanismos de censura. A televisão deverá, portanto, continuar
sendo o que é, mas há quem entenda que não faria tanta diferença se ela tivesse
outro caráter. "Eu não quero uma TV educativa, eu quero educar meus
filhos", defende Edilson Cazeloto, mestre em Comunicação e Semiótica pela
PUC e professor do curso de jornalismo do Mackenzie. No fim das contas,
qualquer que seja a TV, pais e educadores terão sempre o desafio de não
permitir que ela seja a grande formadora dos valores da sociedade. "O
problema é deixar a TV grassar solta; a mídia tem um impacto negativo porque
não é discutida", adverte Cazeloto. O educador precisaria assumir o papel
de mediador entre a mídia e o indivíduo, levando o aluno a estabelecer uma
relação crítica com os meios de comunicação, diz, corroborando Fonseca Carvalho.
Ser multimídia
As
experiências dos que trabalham com alfabetização para a mídia demonstram que
apenas o discurso do professor não basta para despertar o senso crítico do
estudante. Por mais analítico e atraente que seja, ele também é impotente
diante da sedução dos meios de comunicação. "A escola quer ensinar à
criança como se comportar perante a mídia. Visto entre esses padrões - o da
escola e o da mídia - o aluno prefere o da mídia e acaba não absorvendo a
crítica que a escola quer promover. A educomunicação diz que a única solução
possível é trazer a mídia para a escola, tornando-a um articulador do
discurso", aponta Ismar de Oliveira Soares.
Em
outras palavras, mais do que discutir mídia e interpretar os procedimentos e
intenções dos veículos de comunicação, é preciso colocar o estudante no papel
de protagonista, de agente do discurso. Não para que ele aprenda tecnicamente
como se faz comunicação, mas para que compreenda o potencial que cada indivíduo
tem de se expressar. "O importante é que o aluno aprenda a ser multimídia,
e não a operar multimídia", sintetiza Cazeloto.
Isso
significa que um bom trabalho de educomunicação pode ser desenvolvido mesmo com
escassez de recursos e precariedade técnica. Muitos dos projetos ligados à Rede
CEP e outros tantos espalhados pelo país são realmente feitos nessas condições.
O governo federal, contudo, ainda tende a confundir incentivo à alfabetização
para a mídia com investimento em tecnologia. Acha que é só colocar computador nas
escolas, que a educação começa a acontecer.
Esse
pensamento é fruto da crença na capacidade que o surgimento de novas
tecnologias tem de democratizar o acesso à informação e aos meios de se fazer
comunicação. Crença que Eugênio Bucci e Edilson Cazeloto definem numa só e
mesma palavra: fetiche. Segundo Bucci, o fenômeno repete-se toda vez que uma
nova tecnologia se impõe à sociedade. A panacéia da vez é a internet, como já
foram no passado o rádio e a televisão. Cazeloto vê nesse fascínio pela
tecnologia um grande perigo. Como todas as mídias hoje em dia convergem para a
plataforma digital, é como se todos os ovos estivessem sendo colocados numa
cesta só. "Democracia tem a ver com pluralidade", aponta.
Olhar ao redor
Um
dos princípios que norteiam o trabalho dos que promovem a educomunicação no
Brasil é baseado na premissa de que toda comunicação é uma relação: fazer a
escola olhar para fora de si e levar em consideração a realidade que existe ao
seu redor. Não a grande realidade, distante e abstrata, mas a vizinha,
concreta, do cotidiano, da comunidade local. É nesse sentido que pouco importa
com que recursos a comunicação é feita, e sim que benefícios ela gera.
Alexandre Le Voci Sayad entende que, se o colégio não tem recursos para produzir
nada, pode desenvolver grandes projetos educativos a partir de idéias simples.
"Uma escola firmar parceria com o jornal do seu bairro para produzir uma
página de conteúdo, por exemplo, é algo que não envolve custo nenhum para
ninguém", sugere.
Além
da simplicidade, da capacidade de integrar-se com a comunidade em que está
inserida em vez de aventurar-se em projetos megalomaníacos nos quais muitas
vezes a tecnologia é usada à-toa, a experiência das ONGs aponta outros pontos
que devem ser levados em consideração na hora de estruturar um projeto com
mídia na escola.
O
mais importante deles é o interesse dos alunos. Sayad aponta que projetos
impostos pela direção ou pelos professores sem consulta às vontades dos
estudantes tendem a não durar mais de dois meses. Os jovens os abandonam no
meio. Um caminho freqüentemente adotado e que costuma obter um bom índice de
resposta é o de formar comitês conjuntos, com participação de alunos e docentes
e acordos estabelecidos.
Outra
boa iniciativa é permitir que nas oficinas de comunicação os alunos convivam
com diferentes profissionais do setor: jornalistas, publicitários, fotógrafos,
artistas gráficos. Com isso, fora o ganho cultural que a diversidade
naturalmente proporciona, o jovem sente-se mais motivado, pois se percebe
envolvido numa atividade profissional de verdade e não num mero trabalho
escolar.
Por
outro lado, é preciso que diretores e professores não tenham ilusões em relação
à educomunicação. Ela mexe com aquilo que o espanhol Jesús Martín-Barbero, um
dos mais conceituados teóricos da comunicação, chama de "ecossistema
comunicativo", de modo que as relações dentro do ambiente escolar sofrem
modificações. O interesse pelo trabalho com mídia pode, por exemplo, vir
acompanhado de um crescente desinteresse pelas disciplinas da grade curricular
ou pela maneira como são ensinadas. Ao expressar-se pela mídia, o jovem
torna-se mais crítico e percebe que tem o poder de se fazer ouvir no colégio.
Os professores precisam estar preparados para responder com diálogo e um ensino
mais envolvente.
Também não adianta exigir desse tipo de trabalho aquilo que
ele sozinho não pode fazer. "Os projetos em educomunicação não salvam a
educação brasileira. A escola tem de mudar em vários aspectos
simultaneamente", diz Sayad. A participação dos alunos em produção de
mídia é somente uma parte disso.
SolBatt agradece sua visita!
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