quinta-feira, 12 de setembro de 2013

O PEIXE,O AQUÁRIO E O SEU DONO


O peixe, o aquário e seu dono
Belmiro Valverde Jobim Castor

Tão ou mais importante que analisar os fatos recentes que levaram administradores públicos no Paraná, na Bahia e no Rio de Janeiro às páginas policiais ou que, nesse último, convenceram os fluminenses de que é Fernandinho Beira-Mar quem realmente os governa, é procurar entender como o Estado brasileiro chegou a esse ponto de desmoralização, em que todos os limites foram rompidos de maneira debochada e, até agora, praticamente impune.

É como se a máxima mordaz do Barão de Itararé se confirmasse: "para algumas pessoas, a vida pública é uma continuação da privada".
Os últimos episódios são uma demonstração cabal de que, em todos os campos, o Estado perdeu o controle sobre seus prepostos, que - por conta própria - passaram a definir os padrões de conduta que adotam. De que adianta proclamar com pompa e circunstância constitucional que "são invioláveis a vida privada, a honra e a imagem das pessoas" quando a solicitação para grampear telefones é concedida sem qualquer exame ou cautela, permitindo, até que desfeitas amorosas sejam punidas com a escuta ilegal da ex-amada e de seu novo amor?
De que vale assegurar na Lei Magna que "prestará contas qualquer pessoa física ou entidade pública que utilize, arrecade, guarde, gerencie ou administre dinheiros e valores públicos" se os mecanismos de controle se mostram cronicamente incapazes de detectar irregularidades, sobre as quais só irão se debruçar quando a imprensa ou a opinião pública indignada os alertar? De repente e só por acaso, a população descobre que o Estado e suas empresas estão "terceirizando" seus serviços para um punhado de empresas de que nunca se ouviu falar, denominadas por siglas inocentes que se beneficiam invariavelmente do regime, supostamente excepcional da "dispensa de licitação por notória especialização" que os administradores públicos lhes concedem com largueza sob as vistas complacentes do Tribunal de Contas?
Certamente a revelação dos nomes dos proprietários das empresas elucidasse em que os mesmos são notoriamente especializados... Fica também sabendo, que as estatais montaram redes de subsidiárias, em "parcerias estratégicas" com empresários amigos aos quais financiam e garantem mercado para o que produzirão. Ou ainda, como os fluminenses ficaram sabendo, que fiscais da receita estadual e burocratas do governo estadual têm poder ilimitado para cancelar multas milionárias.
Essa erosão do papel institucional do Estado brasileiro não deveria nos surpreender. Afinal, os últimos anos foram diligentemente gastos por teóricos de vários matizes para desmoralizar e demonizar a instituição do Estado, apresentando-o como fonte de todos os nossos males, máquina inútil e pantagruélica a corromper tudo aquilo em que toca. Para todos os males, haveria, porém, um remédio seguro: diminuir o seu papel, emascular seus poderes, vender o seu patrimônio, instilar nos negócios com a coisa pública, o ethos da esperteza e da expediência e do favorecimento explícito.
A complacência, a cumplicidade e a apatia dos governantes, de seus prepostos e, por que não, dos governados, só contribuíram para reforçar essa noção. Como cantou Chico Buarque, enquanto "dormia a pátria amada e mãe tão distraída, sem perceber que era subtraída em tenebrosas transações", a apatia cívica de nossas elites nacionais reforçava a certeza de que os arautos e beneficiários do fim do Estado não seriam incomodados.
Só há uma maneira de deter esse processo, que é promover uma imediata e radical modernização dos instrumentos de controle da sociedade sobre os atos dos governantes e para isso, não é necessário que se multipliquem as estruturas burocráticas de fiscalização, muito ao contrário. O que é preciso é que se instaure em todos os níveis da administração pública ou paraestatal, qualquer que sejam as formas jurídicas que adotem, uma completa e irrestrita política de transparência obrigatória dos atos de gestão.
Com as exceções ditadas pelo bom senso, como alguns poucos assuntos diplomáticos e militares, tudo o que fazem ou deixam de fazer os administradores públicos deveria ser de amplo domínio público e qualquer cidadão deveria ter o direito real de solicitar - e obter imediatamente - informações a respeito de qualquer decisão administrativa no âmbito do governo.
Os puristas dirão que, bem interpretada a legislação, esses direitos já poderiam ser exercidos atualmente, mas o destino inglório das chamadas ações populares e o retrospecto medíocre da atuação dos conselhos de administração, conselhos superiores e órgãos representativos da sociedade aliados ao hermetismo dos Diários oficiais, dos orçamentos estatais e o formalismo ritualista dos Tribunais de Contas demonstram que esses direitos, se é que existem, estão restritos aos iniciados e inacessíveis ao cidadão comum.
O administrador público deveria operar em um ambiente totalmente transparente, em que penetrasse continuamente a luz do sol, que alguém já definiu como o melhor detergente que existe, sem que isso signifique a subversão das estruturas institucionais. Seria como um aquário, em que o peixe está sempre à vista de todos. Afinal, não se conhece exemplos de más ações praticadas pelo peixe que o dono do aquário não saiba. Se souber e aprovar, o problema é dele. Mas não existe segredo entre o peixe e seu dono, como não deveria existir entre os governantes e seus patrões, a população.
Publicado na Gazeta do Povo, 02/03/2003

SolBatt agradece sua visita!

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