domingo, 26 de agosto de 2012

O DIFERENTE QUE INCOMODA

O DIFERENTE QUE INCOMODA:

RELIGIÃO AFRO-BRASILEIRA NO PEDAÇO,

DIVERSIDADE E ALTERIDADE NA ESCOLA PÚBLICA

N
o presente artigo tenho por objetivo relatar o modo como eu, um professor de Ensino Religioso, venho enfrentando
a questão do preconceito, principalmente, em relação às religiões de matriz afro-brasileira em uma escola
pública municipal, em Minas Gerais. Basicamente o artigo se organizará tentando priorizar três eixos: o trabalho
em sala de aula e as informações que os estudantes trouxeram e continuam trazendo sobre este tema; a experiência de
intervenção de uma equipe de educadores por meio de uma pesquisa nos terreiros do entorno da escola; a observação
do reflexo desta intervenção no cotidiano da escola, principalmente, dentro da sala de aula e através da convivência
entre estudantes de outras denominações religiosas e os de matriz religiosa afro-brasileira.
Para começo de conversa terei de relatar como tudo começou. Então, vamos lá. No segundo semestre de 2007,
quando cheguei à Escola Municipal Glória Marques Diniz, em Contagem, Minas Gerais, para trabalhar como professor
de Ensino Religioso no 2º ciclo, fui observando que durante as aulas ou fora delas, quando os alunos falavam sobre sua
filiação religiosa, predominavam os que se declaravam católicos, evangélicos e, raríssimas exceções, alguns se diziam
espíritas. Bem, aos poucos, comecei a ouvir com muita freqüência a palavra “macumba” e também um estudante ou outro
chamando colegas pela alcunha de macumbeiro. Sabia que havia uma referência pejorativa ao colega, como se fosse
um xingamento. Isso me deixava, no mínimo, curioso. Procurei no dicionário, primeiro no Aurélio, este verbete e eis que
deparei com a seguinte definição:
[Do quimb. Ma`kôba.] S.f. Bras. 1. Rel. Designação genérica dos cultos sincréticos afro-brasileiros derivados
de práticas religiosas e divindades de povos bantos, influenciadas pelo candomblé e com elementos
ameríndios, catolicismo, do espiritismo, do ocultismo, etc. 2. Rel. O ritual desses cultos. 3. Rel.
Denominação atribuída à quimbanda (q. v.) pelos seguidores da umbanda da chamada linha branca. 4.
Rel. impr. Magia Negra. 5. Rel. Pop. Bruxaria (2). 6. Antigo instrumento de percussão, espécie de recoreco,
de origem africana, e que produz um som rascante (grifo nosso).
Porém, observe, na seqüência, a definição do dicionário Houaiss para este mesmo verbete:
Nota de OT: Este trabalho é uma contribuição que nos foi enviada pelo professor Sérgio, de Contagem - MG, conforme apresentação abaixo.
Por se tratar de excelente pesquisa e ação pedagógica para sala de aula, disponibilizamos o material para que possa servir de
orientação para os vários educadores do Brasil, de modo especial, da disciplina de Ensino Religioso.
Redação OT
Autor: Sérgio Donizeti Ferreira
Professor de Ensino Religioso da Rede Municipal de Contagem, Minas Gerais. Graduado em filosofia pela PUC Minas
e especialista em Ciências da Religião pelo Instituto Santo Tomás de Aquino (ISTA)
Relato de um projeto de pesquisa sobre religiões de matriz afro-brasileira
no entorno de uma escola pública em Minas Gerais como estratégia de enfrentamento
ao preconceito e à discriminação.
subs tan tivo feminino
1. Rubrica:
música, religião. Regionalismo: Brasil., antigo instrumento de percussão de origem africana, espécie de
canzá que consistia num tubo de taquara com cortes transversais onde se friccionavam duas varetas, e que era outrora
us. em terreiros de cultos afro-brasileiros (grifo nosso)
2. Rubrica:
religião. Designação genérica dos cultos afro-brasileiros originários do nagô e que receberam influências
de outras religiões africanas (p.ex., de Angola e do Congo), e tb. ameríndias, católicas, espíritas e ocultistas.
3. Rubrica:
religião. Regionalismo: Brasil. O ritual celebrado nesses cultos.
4. Derivação:
por extensão de sentido. Designação leiga dos cultos afro-brasileiros em geral (e seus rituais respectivos).
4.1. Derivação:
freqüentemente. Rubrica: religião. Regionalismo: Brasil. Designação leiga desses cultos quando supostamente
praticam a magia negra. Obs.: cf. quimbanda.
5. Derivação:
por metonímia. Rubrica: religião. Regionalismo: Brasil. Oferenda a Exu, esp. nas encruzilhadas; despacho.
6. Derivação:
por extensão de sentido. em sentido lato, magia negra, feitiçaria; feitiço, despacho. Ex.: até m. já fizeram
para (ou contra) ele.
7.
em terreiros do Nordeste do Brasil, excremento.
8. ousadia, audácia.
9. Regionalismo:
Rio de Janeiro. no início do sXX, filha-de-santo da nação cabinda
Observe que no Aurélio a definição de instrumento musical vem em último lugar e no Houaiss em primeiro. Parece-me que
a do Houaiss é mais coerente do ponto de vista histórico e mais lógica se pensarmos que as palavras são vivas e à medida que são
usadas sua semântica vai recebendo outros contornos, ganhando novos significados. Tento mostrar para meus estudantes as várias
possibilidades do termo e que eles se limitam somente à definição 6 (seis) do Houaiss e a 4 (quatro) e 5 (cinco) do Aurélio, além do
que, procuro mostrar valores positivos.
Ao término do ano de 2007, por meio de conversas informais com pessoas residentes no bairro, fui informado sobre a
existência de vários terreiros de candomblé próximos à escola. Daí em diante, sempre que em sala de aula a palavra macumba apa
recia
concluía que havia um certo sentido no uso do termo, pois, embora eles não soubessem, estavam se referindo, na verdade, ao
candomblé e ao toque dos tambores, mesmo sem saber que macumba pode designar uma determinada religião e um instrumento
de música, além de tantos outros significados.
Cheguei à conclusão de que seria necessária uma melhor compreensão do problema do preconceito contra as religiões
afro-brasileiras. Além disso, caberia observar com mais detalhes a forma como isso se dava no contexto da minha escola através do
uso constante do termo macumba, que era a única palavra que os estudantes conheciam e a ela atrelavam o preconceito (desco
nhecimento),
o medo e uma carga negativa.
Então, propus o enfrentamento do problema por meio de um projeto de pesquisa. Resumidamente a estrutura seria: fazer
um levantamento das casas de candomblé no entorno da escola; elaborar um questionário estruturado; conhecer mais de perto ou
por dentro esta religião através de visitas e trabalho de campo e, por fim, publicar um texto contendo o resultado deste trabalho,
visando com isso produzir conhecimento com base na realidade do (s) bairro (s) próximo (s) da escola de onde são provenientes os
nossos estudantes.
Alguns colegas aceitaram a idéia e uma equipe de trabalho com quatro pessoas se constituiu, a saber: Sandra Mara, supervisora
pedagógica; Paola Micheli, ex-professora de ensino religioso da escola; Higino, capoeirista e coordenador do Programa Escola Aberta
na escola e eu, professor de ensino religioso.
Para além disso, seria interessante pensar o caráter interdisciplinar deste projeto, pois com a aprovação
da Lei nº 10.639/2003, a qual colocou para o sistema nacional de ensino a obrigatoriedade de se ensinar história
da África e cultura afro-brasileira, havendo um acréscimo de dois artigos à Lei de Diretrizes e Bases da Educa
ção
Nacional (LDB): 26-A e 79-B. A religião é elemento fundamental da cultura e como tal deve ser estudado,
como qualquer outro elemento do sistema cultural. Nesse sentido, o conhecimento sobre ela pode entrar
não somente no currículo de história, artes ou literatura, como também da geografia, das linguagens de
modo geral, do ensino religioso, pois é ingrediente que ajudou a formar a cultura brasileira e que a impregnou
de valores, hábitos, costumes, de arte, de música e contribuiu para formar a “alma da cultura
brasileira”.
Alteridade, no território desconhecido da diferença: o outro
No ano de 2008 iniciamos as visitas aos terreiros. O primeiro encontro foi o encontro dos desconhecidos. Nós, vindo
da escola, e os zeladores (sacerdotes e sacerdotisas) do candomblé nos recebendo. Foi o primeiro contato de pessoas estranhas
umas às outras, com exceção do Higino, que é morador do bairro e já conhecia todas as lideranças do candomblé dali.
Pelo que pudemos concluir, foi a primeira vez que profissionais da nossa escola faziam um trabalho de pesquisa dessa natureza.
Algumas perguntas para as quais precisava encontrar respostas: por que os estudantes que são do candomblé têm
dificuldade de se assumirem enquanto tais? De fato, a qual referencial os estudantes mais se apegam, quando falam macumba:
seria o despacho encontrado nas encruzas? Seria o instrumento de música? Seria a própria palavra ouvida pela boca de
outros: na escola, na família, entre os amigos, na rua por meio de relatos esparsos? Esses eram alguns dos questionamentos.
A resposta que encontrei para a primeira pergunta foi: ninguém em sã consciência faz opção pelo sofrimento. Se ser do
candomblé significa ser perseguido, então, se faz necessário desenvolver algumas estratégias de sobrevivência e uma delas
é não dizer que se é do candomblé; melhor até dizer que se é católico ou espírita. Afinal, essa foi a estratégia adotada pelos
submetidos ao sistema escravocrata colonial, como sabemos pela história do Brasil.
Lembro-me que numa de nossas entrevistas, havia, além da pessoa chefe da casa, uma outra pessoa membro do
candomblé e mãe de uma estudante de nossa escola que ao ser perguntada sobre essa questão da dificuldade de se assumir
candomblecista nos respondeu que o principal medo de sua filha não era ser discriminada, mas sim ser rejeitada pelas colegas
e amigas. Por isso ela não dizia de qual religião era, pois se dissesse as amigas se afastariam dela. Este fato ocorria com
freqüência no ambiente escolar.
Eu, como professor, fiquei surpreso ao encontrar vários dos meus alunos (essa, talvez tenha sido uma das melhores
descobertas, pois afetou a relação professor x aluno na ambiente escolar). Eles ficaram surpresos também, pois parece que foi
a primeira vez que um professor visitava alguma comunidade religiosa de aluno e por se tratar do candomblé tornava-se mais
raro ainda. Curiosamente, tive impressão de que aos olhos desses meus alunos, a partir desse momento, era como se eu, no
meu papel institucional e simbólico de professor deles ao sair do espaço habitual da escola e adentrar no espaço sagrado e
religioso deles eu estava, de alguma maneira, legitimando-os, pois não fui até lá para discriminá-los, mas sim para reconhecêlos
como sujeitos, cidadãos. Aquele gesto queria transmitir-lhes que a prática religiosa do candomblé é tão legítima quanto
as das outras. E nesse sentido, não existem melhores nem piores, todas as denominações religiosas são dignas de respeito e
o espaço escolar é onde se manifesta a diferença e a diversidade, seja ela religiosa ou não.
T odos os terreiros que listamos foram solícitos em nos receber. Todos os líderes concederam-nos entrevistas e explicações
sobre o candomblé, convidaram-nos para as festas públicas em suas respectivas casas. Na entrevista tentamos colocar
e ver qual a visão dos candomblecistas sobre questões como: a estrutura de organização de uma casa de candomblé; as divindades;
a relação com a natureza; como é a relação da casa com a vizinhança; como é lidar com o preconceito e a discriminação
religiosa; a dificuldade em se assumir candomblecista; a relação com a umbanda; o papel e importância da mulher dentro da
casa de candomblé; como as crianças e adolescentes do candomblé são tratadas pelos colegas e professores dentro da escola
ou quais são as reclamações mais freqüentes etc.
Em algumas das nossas entrevistas era notável o tom de desabafo dos zeladores (sacerdotes e sacerdotisas), outros
eram mais contidos, respondiam somente ao essencial. Numa casa de candomblé angola havia uma igreja evangélica
bem em frente, é no mínimo intrigante, mas não inocente. Além do que, em sociologia da religião há uma
tese sobre o mercado religioso. E quando há mercado, não nos esqueçamos, há disputa.
As casas de candomblé são provenientes de várias nações. Visitamos duas de nação ketu e cinco de
nação angola próximas à escola e uma em outra cidade. As de nação angola podem se subdividir em muxicongo
e cassange. As de nação Ketu usam o dialeto yorubá e as de angola usam o dialeto banto. Nos meios
de comunicação e na música popular brasileira ouvimos com freqüência palavras como orixá, babalorixá,
ogã (que são todas do dialeto yorubá), suas correspondentes no banto são nkisse, tateto, cambono.
Através do contato que estabelecemos com pessoas do candomblé e por meio das entrevistas
gravadas, fotos, vídeos, conversas informais, visitas aos rituais públicos fomos, aos poucos, nos
tornando conhecidos nesse espaço pelos seguidores desta religião. Havia uma questão forte que nos colocava frente a frente:
alargar a compreensão do fenômeno do preconceito e discriminação contra as religiões de matriz afro-brasileira e, em segundo
lugar, melhorar a relação entre escola e estudantes dessa mesma matriz religiosa.
O reflexo de um ano de caminhada: de volta à escola
O contato estabelecido através das visitas e das conversas possibilitou que laços afetivos aproximassem as pessoas. A isso
credito o que veio acontecer depois. Meus estudantes não passaram pelo constrangimento em sala de aula de terem que
declarar de qual religião eram, mas foram percebidos a partir do momento em que começamos a pesquisa. Ao longo do ano
de 2008 passei a ter mais elementos para trabalhar com meus estudantes por causa da pesquisa.
Certa vez, numa aula em que fazíamos uma discussão sobre racismo, uma estudante do 1º ano do 3º ciclo (antiga 6ª série)
se assumiu do candomblé espontaneamente e ainda apontou quatro alunos que a chamavam de macumbeira. Pouco tempo
depois ela estava de preceito e por causa disso tinha de vir à escola vestida de branco, usando dois braceletes na parte superior
dos braços (chamados egun e contraegun), usando kelê, calçando sandálias e com um chapeuzinho ou boné branco.
Uma professora de língua materna (língua brasileira), que sabia do meu trabalho e da pesquisa, pediu-me que tivesse uma
conversa com a turma da sala em que esta menina estudava para evitar maiores problemas (entenda-se discriminação). Fiquei
surpreso quando a estudante assumiu sua identidade religiosa, mas penso, sem falsa modéstia, que o fato de ela ter sido
capaz de dar esse passo e se posicionar não foi por acaso e sim porque, no mínimo, sentiu confiança de que poderia fazer isso
na presença do professor de ensino religioso. Ela sentiu-se segura.
Na ocasião pedi que fizessem um círculo e falei-lhes do momento que a colega estava vivendo e que ela teria de vir à escola
por um período trajando-se do modo como eles estavam vendo. Foi uma experiência de diversidade da qual não vou me
esquecer. Pedi, então, que a menina compartilhasse com seus colegas sobre o momento que ela estava vivendo e sobre sua
indumentária. Ao que ela atendeu. A turma parece que compreendeu, pois não tivemos um problema sequer, pelo menos não
tive informações e ela não procurou a direção da escola ou a mim para reclamar sobre isso.
Uma outra menina do 3º ano do 2º ciclo (5ª série) viveu uma experiência mais dramática. Alguns de seus colegas a viram
em uma foto vestida a caráter. Alguns meninos de sua turma começaram a chamá-la de macumbeira. Desta vez tive de fazer
uma intervenção mais dura com a turma. Disse-lhes que tratar uma colega daquele modo era o mesmo que discriminá-la por
ser de uma religião que eles desconheciam ou que era diferente da deles. Propus que a turma se reconciliasse com a colega
que ela ficara muito ofendida e que se referissem à religião dela por meio de um termo mais adequado em vez de macumbeira.
A partir daí não houve mais problema na turma por causa disso. E a menina não precisa esconder sua filiação religiosa.
No início de 2009 mais duas adolescentes se iniciaram no candomblé e por causa disso tinham de ir à escola portando
uma indumentária própria. No caso delas, além da roupa branca elas tiveram de raspar a cabeça. Ambas tinham os cabelos
compridos. Acho para a mulher esse é um fator que torna as coisas mais difíceis ainda dentro do espaço escolar. O cabelo é
um símbolo da vaidade e perdê-lo não é tão fácil quanto é para um menino. Culturalmente não nos assustamos quando nos
deparamos com um menino careca, mas quando é uma mulher... pensamos um monte de outras coisas.
Aos poucos os estudantes vão notando que não é aceitável um tratamento diferencial aos colegas por causa de sua diferença
e que o diferente é e deve ser aceito e que isso é um valor que não pode ser negado.
Entre os menores há resistência tanto quanto entre os maiores. No meu trabalho pedagógico venho apostando que a
diversidade dentro do espaço escolar deve ser colocada para as crianças. Quanto antes elas forem educadas
para o respeito entre si e à diversidade e para uma convivência saudável, tanto melhor. Creio que estarão mais
preparadas para viver e conviver na sociedade atual e futura.
Vamos a mais um caso marcante ocorrido em 2009. Desta vez numa turma de 1º ano do 2º ciclo (3ª série).
Não me esqueço do episódio, que muito me fez pensar. A escola participa de um projeto do governo
federal, denominado Mais Educação. A concepção basicamente é que o estudante fique na escola no
contraturno participando de oficinas. Certa feita, no turno da tarde, acontecia uma oficina de percussão
bem próximo à uma das salas de uma turma de 1º ano do 2º ciclo, na qual eu leciono. A professora
que estava com eles coincidente ao horário da oficina de percussão me disse que houve alguns comentários dos estudantes,
alguns muxoxos, fazendo referência aos sons da percussão da oficina e associando-o à macumba. Pelo visto eles associavam
o toque da percussão à macumba. Então, a professora tentou conversar com eles sobre isso, tentando amainar um pouco a
situação.
Nesse mesmo dia, dei minha aula de Ensino Religioso e, não querendo deixar passar de liso o acontecido, uma vez que
proponho a reconstrução semântica e imaginária dos estudantes, entrei no assunto e puxei a conversa alegando que a professora
deles me havia dito sobre os comentários deles acerca da macumba. Foi a primeira vez que o assunto foi abordado
nesta turma.
Minha intenção primeira foi provocar os estudantes para tentar situar em que pé estava a questão. Portanto, usei a seguinte
estratégia: anotei no quadro a palavra macumba significando instrumento musical e a expressão oficina de percussão
e tentei estabelecer a diferença entre as duas. Não me esqueço do comentário de um menino: “eu vou ter que escrever essa
palavra no meu caderno? Se minha mãe vir essa palavra no meu caderno ela me bate!”
De cara abordei o problema da maldade, mas antes fiz uma introdução sobre um dos principais significados que a palavra
macumba possui, eu a defini simplesmente como um instrumento musical de origem africana e, em seguida, expliquei o
significado da expressão “oficina de percussão”, que era o que estava acontecendo na sala ao lado e, depois, aleguei que não
entendia qual relação havia de uma coisa com a outra; disse-lhes que compreender a palavra macumba somente pelo viés do
mal ou da maldade seria ignorar uma porção de fatos corriqueiros da vida humana cotidiana. Falei-lhes que desejar o mal para
alguém independe de ser ou não macumba. Posso desejar o mal para alguém de quem não gosto sem que ela saiba. Ou seja,
achamos que a macumba soa como algo mau, mas não percebemos que há tanta ou mais maldade em um coleguinha que usa
de ameaças para conseguir as coisas do outro coleguinha; um colega que bate no outro; há tanta maldade em discriminar o
outro por causa de alguma diferença que ele manifesta, por exemplo, chamar um coleguinha negro de macaco etc.
A reação foi imediata! De repente, havia umas oito mãos erguidas pra cima pedindo a vez pra falar. Alguns continuaram
dizendo veementemente que a macumba é fazer mal pros outros. Até falaram em boca de sapo costurada. Outro sacou o que
eu estava tentando lhe dizer e fez a associação da macumba com música e que, então, o pessoal que estava tocando estava
fazendo macumba num sentido não pejorativo.
Minha surpresa e o que fertilizou meus pensamentos foi a desenvoltura de uma das estudantes que se disse evangélica
da igreja Deus é Amor. Ela alegou que o seu pastor fala que a macumba é o mal. Mas o melhor ainda estava por vir, ela ficou
tão empolgada que veio até a frente da turma e, antes de virar-se de frente para os coleguinhas, me perguntou de forma direta
se eu acreditava em revelação. Eu lhe respondi que esta palavra poderia ter vários significados e que eu não sabia o que
revelação significava dentro da religião dela. A garotinha então relatou que há algumas pessoas que congregam dentro da
igreja dela que tem revelações e que, certa feita, uma mulher que congregava teve uma revelação do Espírito Santo, segundo
a mesma, alguém havia feito uma macumba para uma outra pessoa que também estava na congregação.
Esta garota teve uma sacada que considero brilhante para um menina de 9 anos de idade. Ela percebeu a fala do pastor, a
fala da pessoa que dizia ter tido a revelação em confronto com o que eu acabara de lhes falar, ou seja, ela estava diante de um
confronto de interpretações. O discurso do grupo religioso reafirmando o conceito pejorativo e discriminador de macumba
e o do Ensino Religioso, defendendo a sala de aula como espaço de convivência em que a diversidade de crenças deve ter o
mesmo tratamento, nem mais nem menos, nem melhor nem pior.
A partir dali eu disse que eu a estava entendendo, que a partir dali nós poderíamos construir uma compreensão mútua.
Disse para a garotada que, a partir daquele momento, eu os estava entendendo. Sabia de onde eles estavam falando. E porque
as nossas compreensões eram tão diferentes.
O problema não foi solucionado naquele dia, naquela aula de 50 minutos, mas vejo que as crianças sacaram que elas puderam
dizer o que sabem e ouviram o que nunca tinham ouvido até então sobre o assunto e que na escola alguém estava dando
tratamento a uma questão tabu pra eles. Acho que alguns entenderam que vários discursos estavam em jogo, mesmo que sem
muita consciência: o que eles receberam e a abordagem do professor de ensino religioso. Esse era o objetivo.
O site
www.otranscendente.com.br está disponível para ajudar em sua pesquisa.
 

SolBatt agradece sua visita!

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